Chico Simões
Cultura tradicional

Chico Simões

Os mamulengos de Chico já rodaram o mundo. Ele conta que aprendeu a brincar com bonecos com o mestre Carlinhos Babau, goiano que morou muito tempo na Paraíba e que aprendeu a arte com o mestre Antônio do Babau. "Na Paraíba, mamulengo se chama babau", conta Chico.

Ao sabor dos improvisos e da comunicação direta com o público, o espetáculo é para Chico Simões "uma brincadeira". 


Em 2009, logo após apresentar espetáculo na III Aldeia Multiétnica, Chico Simões concedeu entrevista ao repórter Vitor Santana para o site do Encontro de Culturas Tradicionais da Chapada dos Veadeiros:

Chico Simões, a gente sabe que você tem um longo tempo de estrada com esses espetáculos de bonecos, e você deve escutar essa pergunta muitas vezes, mas como foi o seu primeiro contato com os bonecos mamulengos?

Rapaz, foi um boneco de ventriloquia que passou na minha escola. Passou um ventrículo e foi incrível que a primeira apresentação que ele fez eu não pude assistir porque tinha que pagar. Pagava muito pouco, mas eu não tinha grana. E então ficamos eu e mais uns cinco alunos sem assistir, mas ouvíamos os outros rindo. E no final, quando voltaram para dentro da sala de aula, comentaram muito sobre o boneco que falava. Eu dizia "Pô, como é que pode". Fiquei impressionado com essa história. Como é que pode um boneco falar? Não conseguia imaginar! Só que no outro dia, para minha surpresa, o cara se apresentou novamente e de graça, para todo mundo. Foi maravilhoso. Eu corri e fiquei logo na primeira fila, sentado no chão. Ele começou a brincadeira e chamou Juquinha, o boneco: "Juquinha acorda, acorda, Juquinha, acorda!". E o Juquinha nada, não acordava. Ele pedia para a galera gritar: "Acorda Juquinha!". E todo mundo gritava em coro "Acorda Juquinha!". E o boneco não acordava. Eu me levantei, fui até lá e dei um tapa na perna do Juquinha (risadas). Quase que eu derrubo o boneco com o bonequeiro e tudo. Aí, ele acordou assustado com aquilo e eu achei fantástico. Pensei que eu que tinha acordado o Juquinha (risadas).

Em que cidade foi isso?

Isso foi em Taguatinga, que é uma região administrativa de Brasília. Em uma escola pública, dessas muitas escolas que existem por lá.

Há quanto tempo você já está na estrada com essas apresentações?

Olha, aprendendo eu estou desde 1981, acompanhando outras pessoas que eu considero meus mestres. Depois, de 1981 a 1984, eu vivi pelo Nordeste, entre idas e vindas a Brasília, sempre procurando conviver com mestres da cultura popular, mágicos, palhaços, ventríloquos, camelôs, toda essa gente da rua. Em 1985, eu voltei a Brasília e montei o Mamulengo Presepada, que é a brincadeira que eu já faço há 24 anos.

E quais são os temas que você utiliza em suas apresentações?

Olha, são temas universais porque eles cabem bem a qualquer público, em qualquer lugar, qualquer cultura. Além dos temas particulares daquela cultura onde estou me apresentando. Então, eu sempre procuro saber, no local onde vou me apresentar, o nome de algumas pessoas, algumas situações que acontecem ali, para que dentro da brincadeira eu possa utilizar esses elementos. Assim, eu faço uma comunicação com o particular e, ao mesmo tempo, com o universal, porque essas coisas vêm desde sempre e estão em toda parte.

Que tipos de bonecos você utiliza durante o show? Quantos são? Tem algum tipo específico?

Olha, na minha mala ficam mais ou menos uns 25 bonecos. Não quer dizer que eu vá apresentar todos eles, todas as vezes que eu abri-la. Eu posso apresentar cinco, dez, quinze, dependendo da brincadeira, de quanto tempo, da situação, da reação do público. Então, tudo isso é muito improvisado, no sentido de que existem muitas possibilidades. Improvisação não é você fazer o dá na cabeça na hora, não. Improvisar é você ter um repertório muito grande de possibilidades de atuação e, naquela situação, você usa uma daquelas possibilidades. O público pensa que você está criando na hora que você está improvisando, quando na verdade você está utilizando uma das milhares de possibilidades que você tem para aquela situação. Eu entro no jogo aberto, eu não sei o que vai acontecer quando eu começo a brincar. Eu tenho que ter só um arsenal de coisas, e aí eu vou usando de acordo com o sabor do momento.

Como são feitos esses bonecos? Qual matéria você utiliza?

Geralmente é madeira, que é um material resistente, mas pode ser também cabaça, tecido. São sempre materiais orgânicos. Eu nunca utilizo matérias plásticas ou sintéticas. Sempre são materiais orgânicos mesmo, madeira, tecido e metal.

E quanto tempo você demora pra fazer um boneco? Dependendo da cidade, você cria um boneco específico?

Depende. Eu já terminei de almoçar, comecei a esculpir um boneco e às duas horas da tarde ele já estava pronto, porque eu queria fazer aquele boneco para brincar à tarde. E tem boneco que você leva anos e ele nunca fica pronto. Ele fica te acompanhando o tempo inteiro, mas ele nunca está pronto. Então depende muito, não tem um tempo estabelecido, não. Pode ser muito rápido e pode demorar muito.

Por quais lugares você já viajou com esses espetáculos?

Já andei uns vinte países. O Brasil todo, todo, todo, e depois toda a América Latina. Um pouco da América do Norte e depois a Europa. Falta ainda a África e a Ásia, que eu gosto muito e são lugares que eu pretendo ir ainda.

Como você maneja os bonecos? Como é feito todo o trabalho na apresentação? Você sempre usa bonecos ou às vezes é só você no espetáculo?

Às vezes sou eu usando objetos, mas se você considerar o boneco como um objeto, ou um objeto como personagem, com essa força, com essa anima, com essa alma, pra mim é indiferente. Eu sei que o público distingue o boneco de um objeto, mas eu, quando estou brincando, não distingo. Eu tanto sei que o boneco é um objeto, como eu sei que um objeto tem vida. Aí eu brinco com isso. Então não tem uma maneira, uma técnica para que eu possa falar a respeito. Eu posso falar que com o tempo você vai aprendendo e com a prática você vai sabendo utilizar cada boneco, cada material ou apenas o próprio corpo. E aí ele acaba se transformando num meio de expressão também, de acordo com o que todo o público sugere.

Você acredita que essas apresentações de mamulengo sejam eficientes em passar alguma mensagem para as crianças, ou ajudá-las em algum ensino?

Claro, pode ajudar as crianças a dizer "Não" (pequena risada). Ajudar as crianças a... Eu gosto muito de brincar, a brincadeira do mamulengo é a minha brincadeira. A minha brincadeira é bem pedagógica e as pessoas sempre perguntam isso. O boneco vai cuspir, escarrar, vai arrotar, vai peidar, vai fazer xixi, sabe? Essas coisas orgânicas que o ser humano faz, mas não gosta de falar, não comenta e muitas vezes reprime. E essa repressão à naturalidade que a gente tem pode causar problemas e até mesmo doenças. Então, quando eu brinco e um boneco faz xixi na plateia, e a plateia se diverte à beça com isso, para mim eu estou exercendo uma função educativa, uma função pedagógica. Eu posso não ser politicamente correto para o gosto das professoras do ensino formal ou para a maioria dos conservadores, mas, com certeza, pelos anos de experiência, eu sei que é educativo fazer essas provocações e o convite às crianças para que sejam mais espontâneas.

Você já trabalhou num projeto, um Ponto de Cultura, certo? Conta pra gente como foi esse período.

Eu considero que até hoje eu trabalho em um Ponto de Cultura. Até mesmo porque antes de existir esse nome "Ponto de Cultura" eu já era de um Ponto de Cultura. É questão de um nome que o Estado, o governo, deu a uma coisa que a gente já fazia. Então, o Ponto de Cultura não é uma criação nova, não acabou e nem vai acabar. O Ponto de Cultura é um lugar em que as pessoas se reúnem para fazer cultura, principalmente uma cultura de algum interesse social, que beneficia a comunidade. Isso foi muito bom. É muito bom que o Estado, que o governo, apoie esses grupos para que eles possam se fortalecer e desenvolver bastante o trabalho que já vinham fazendo. Foi o que aconteceu com a gente. Nós crescemos imensamente nesse período que tivemos convênio como Ponto de Cultura. Ainda estou dentro dessa rede de Pontos de Cultura e tenho crescido bastante, conhecido muita gente que faz um trabalho parecido e tem questões e problemas parecidos. A gente vai encontrando também soluções parecidas para esses problemas. E, sobretudo, o fim dessa sensação de que a gente é só, de que seu trabalho é inglório, que não vai mudar nada. Quando a gente entra na rede a gente vê que tem muita gente fazendo, que tem muita gente mudando. A gente muda também nossa postura.

Você disse que antes de ser dado o nome "Ponto de Cultura", você já se considerava um Ponto de Cultura. Então seria um Ponto de Cultura ambulante?

Isso, exatamente! Um ponto em movimento (risada). Não é um ponto fixo, não, é um ponto em movimento, porque onde eu chego, eu me apresento, faço oficinas e, sobretudo, converso com as pessoas. É muito bom conversar com as pessoas sobre a nossa profissão. Em geral, as pessoas tem uma ideia completamente diferente da nossa a respeito do nosso ofício. É bom surpreendê-los também com questões que são do dia-a-dia.

Que ideias diferentes as pessoas têm da sua profissão?

As pessoas pensam que artistas, no geral, são portadores de um dom, de alguma qualidade especial ou diferenciada. Na verdade, isso é falso. Os artistas são operários, como eu disse, que trabalham com essa matéria-prima que é o sentimento humano, que são os jogos, as relações. Sem dúvida é uma profissão privilegiada, mas no sentido de que nós podemos nos comunicar com muitas pessoas ao mesmo tempo. Um pedreiro dificilmente faz isso. Ou dificilmente a pessoa reconhece na parede uma comunicação do pedreiro com quem habita aquela casa. Artista é uma prática como qualquer outra profissão, com um conhecimento que precisa ser desenvolvido.

ENTREVISTA COM MATEUS

*Texto da repórter do Encontro em 2009, Giovanna Beltrão

Um teatro onde os personagens são bonecos. Mamulengos. Todos eles manejados por um palhaço: Mateus, criação de Chico Simões. Começando sua apresentação às 18h40 desta quarta-feira, 29 de julho, no Espaço Seu Tilú, Mateus provocou risadas e encantamento em crianças, adultos e idosos que foram ver a performance do Teatro Mamulengo Presepada. Durante uma hora, a brincadeira improvisada do palhaço que movimentava os bonecos atrás da cortina prendeu os olhos da plateia no centro do picadeiro. Acompanhado pelo som de um zabumbeiro, um rabequeiro e um triangulista, Mateus usou fatos do cotidiano e o imaginário popular para contar uma de suas muitas histórias.

A plateia já começava a se divertir com as mágicas e piadas do palhaço antes mesmo dos bonecos entrarem em cena. Quando os mamulengos apareceram, o público ficou atento para entender o que viria pela frente. Interagindo com as pessoas que assistiam os bonecos brincarem, Mateus contou a história do vaqueiro Benedito e de Margarida Muito Prazer da Satisfação, um casal que esperava o primeiro filho. No enredo, os personagens Capitão João Redondo, pai de Margarida era contra o casamento da filha; e Tião Pescoção, pai de Benedito estava feliz em ter um neto. O boi Estrela, a cobra Anaconda e a caveira Jaraguá uniam o imaginário popular aos acontecimentos corriqueiros da vida dos personagens.

Após o espetáculo, conversei com o palhaço Mateus, que desmontava sua fantasia, tirava sua maquiagem e voltava a ser Chico Simões enquanto respondia as perguntas. No entanto, o que ficou marcado nessa entrevista foi a alma de um palhaço que se sente realizado a cada vez que brinca com seus bonecos e vê a alegria e o encantamento estampado nos olhos de quem o assiste. Essa conversa você acompanha abaixo.

Mateus, em relação aos bonecos, é você quem os faz? Não. Os bonecos vêm de muito, muito tempo. Muito antes das pessoas. Eu nem consigo falar sobre os bonecos. O que eu posso falar sobre eles é que quando as pessoas existiram, os bonecos já existiam há muito tempo. E esses bonecos [os dele] também, quando eu nasci eles já existiam, já brincavam muito, já vinham há muito tempo brincando. Eu recebi esses bonecos dos meus mestres e estou brincando com eles. Qualquer hora eu vou parar e eles vão continuar. Então, eu acho que os bonecos podem falar mais sobre a gente do que a gente sobre eles.

E os personagens da história que você contou hoje? Fale um pouco sobre eles. Os personagens são esse povo "brasileiríssimo". São personagens bem típicos do povo brasileiro e que se envolvem em situações muito parecidas com as situações que o povo vive, tanto nas suas alegrias, nas suas festas, quanto nos seus problemas e nas suas maneiras de procurar resolver os problemas. Eu acho que é por isso que o público se identifica tanto, porque são personagens muito comuns a qualquer público no Brasil. E se estiver fora do Brasil, com certeza os bonecos vão tratar de coisas universais, como a mulher ficar grávida e ter o filho, o casal cuidar de um filho. Em qualquer lugar do mundo o público vai entender isso, vai se identificar.

Havia personagens folclóricos na história, como o boi e a caveira. Como você concebeu essa questão de juntar o real e o imaginário? Olha, pra mim não é folclórico. Esses são personagens da cultura brasileira. Do mesmo jeito que um dia Shakespeare criou Romeu e Julieta, e eles não são folclóricos; o boi foi criado por alguém anônimo ou pelo povo brasileiro. Então, eles também não são folclore. Para mim folclore é a maneira como o estrangeiro vê o que eu faço. Eu não posso considerar o que eu faço como folclore, o que eu faço é arte, é teatro, é vida. Então não é folclore. Agora, existem personagens que são do mundo da mitologia, do imaginário mesmo. Existem os animais e existem os humanos como personagens, porque na verdade são todos bonecos. Nós estamos falando de mamulengos. Como na nossa vida também existem as histórias que são do imaginário. Nós existimos como seres reais e têm os animais; é como a vida mesmo. Para mim, não existe essa distinção entre folclore e teatro.

E não te preocupa que as crianças tenham medo, por exemplo, da caveira? Muito pelo contrário. Se as crianças não tiverem medo da morte elas vão morrer. Nós só existimos porque nós temos medo. O medo é que nos ajuda a dar a medida das coisas. O medo é importante, o medo é necessário. O pânico, o pavor não. Isso aí é um problema. Então, se no meio de 500 crianças tem uma que tem pânico, é até bom por que a gente identifica: "Olha, aquela criança está com algum problema". E isso precisa ser tratado. Mas aquele medo causado pela surpresa, esse medo é até divertido. E é importante ter medo. Do mesmo jeito que é importante também ter coragem. Então é uma medida. Eu tinha muito medo de palhaço, de circo, de cigano e de parque de diversões. Quando eu era criança, eu me escondia debaixo da cama quando eu via essas coisas. Ao mesmo tempo, ali tinha um encantamento, uma curiosidade tão grande que depois que eu cresci eu me aproximei e hoje eu amo circo, eu amo ciganos, amo parque de diversões, amo tudo isso.  

O que você faz quando uma criança tem medo de palhaço? Eu digo: "Muito bem, porque eu também tenho medo" (risos). Eu morro de medo, do Bozo, do Ronald McDonald. Desses palhaços pasteurizados aí, eu morro de medo. Isso é triste. Agora, o que é o palhaço? O palhaço, na sua origem, essencialmente, é o lado grotesco do ser humano. Ele é um bêbado, por isso que ele tem o nariz vermelho. A bochecha dele é vermelha porque ele está com frio. As roupas dele são rasgadas, são diferentes: ou apertadas, ou folgadas. Isso porque são roupas de outras pessoas. É o Charles Chaplin, é o vagabundo. O palhaço é um vagabundo. É natural, as crianças podem ter medo dos vagabundos. São personagens que existem e são seres humanos também. O palhaço é como a alma do ser humano. Agora, infelizmente, o comércio se esqueceu disso, da poesia do palhaço, ele foi banalizado. Às vezes, a criança tem medo da máscara, da pintura. Não tem nenhum problema. Eu procuro chegar muito devagar, eu olho o público e vou chegando muito devagar. Às vezes eu faço a pintura na frente das pessoas. Existem várias maneiras de ir amortizando, trabalhando essa relação. Mas é natural ter medo. Não tem nenhum problema não.

E quando você apresenta e as crianças participam, brincam e te aplaudem; você se sente realizado? Eu me sinto. Porque o público é muito generoso. O povo sai de casa, vem pra um lugar e permite que eu me apresente pra ele. Isso é uma generosidade muito grande da parte das pessoas. Eles  tomam um tempo da vida deles para ver o que eu vou fazer, algo que eles nem sabem o que é. Eles me dão um crédito muito grande. Então, eu já começo agradecendo o público e procuro dar o melhor de mim para não ofender esse público, para não desrespeitar, para dignificar esse tempo que eles tiraram, desligaram a televisão e vieram para o circo; para que esse tempo seja um tempo construtivo, divertido na vida deles. E no final, quando esse público reconhece o meu trabalho, o meu esforço e também fica contente eu me sinto realizado. Essa sensação é uma coisa indescritível. E isso me compromete cada vez mais com esse público, me compromete a melhorar meu trabalho, a fazer cada vez melhor, ser mais cuidadoso, mais responsável e ao mesmo tempo me realiza, me diz que eu estou no caminho certo.    


   

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