Valmir Santos Damasceno conheceu a Capoeira Angola em 1981, com o retorno do Mestre Moraes do Rio de Janeiro a Salvador (BA). Integrou a primeira turma do Grupo de Capoeira Angola Pelourinho - GCAP, no Centro de Cultura Popular, hoje conhecido como Forte da Capoeira. Em meados de 1995, após deixar o GCAP, ingressou na Fundação Internacional de Capoeira Angola - FICA, tornando-se responsável pelo núcleo FICA-Bahia. Em sua primeira participação no Encontro de Culturas Tradicionais da Chapada dos Veadeiros, em 2013, Mestre Valmir falou à repórter do Encontro, Keyane Dias, sobre a Capoeira Angola como tradição, sua origem, disseminação no exterior e outros temas que permeiam essa importante manifestação cultural afro-brasileira.
Mestre, qual a sua percepção sobre a origem da Capoeira Angola?
Quando a gente fala da origem da capoeira, é importante ressaltar a participação do povo africano na diáspora, não só nas Américas, mas no mundo inteiro. A capoeira é trazida para o Brasil nesse processo de escravidão, com a vinda dos primeiros negros durante a colonização. Com eles vieram várias manifestações, que sofrem mudanças, principalmente pela questão da resistência e da sobrevivência, como a capoeira, o samba, o batuque e a religiosidade. É importante registrar a capoeira como manifestação afro-brasileira.
A chamada Capoeira Angola é sempre lembrada como um movimento de tradição. Como se dá o processo de aprendizado dessa tradição?
Na capoeira angola, a pessoa que aprende precisa de um mestre. Na cultura trazida pela diáspora africana existe uma relação de respeito com a ancestralidade, onde quem detém o conhecimento são os mais velhos. Mesmo a pessoa não sendo reconhecida como mestre de uma arte específica, ela é mestre da experiência, mestre do saber construído no cotidiano. Essas pessoas, diferente de um engenheiro, por exemplo, são nossos tatas, que em linguagem de origem africana significa pai, senhor. Eu vejo que a capoeira angola passa por esse processo da vivência, da presença e do conhecimento de todos os processos que a integram. Na capoeira angola não há tempo pra você aprender. Nossas maiores referências são pessoas que passaram dos 60, 70 anos de idade. Nossa preocupação hoje em dia é com a sensibilidade e a subjetividade. Nos preocupa ver a capoeira como competição, como disciplina em universidades por exemplo. Como ela será avaliada, se cada um tem seu tempo?
Como funciona o reconhecimento de uma pessoa como mestre de capoeira angola e como é a relação com os alunos?
Tem escolas que apenas mudam a nomenclatura, mas as funções são as mesmas. O aluno é aquele que segue seu mestre, a pessoa em que acredita. Em determinado momento, pelo comprometimento pessoal em uma comunidade, a pessoa que já detém determinado conhecimento, toca, joga e se comporta como um capoeira passa a dar aula, e daí pode vir a se tornar um treinel, sob a supervisão de seu mestre. A partir disso, vem o contramestre de capoeira, que substitui a figura do mestre em sua ausência. Todas essas funções precisam ter referências. Para ser mestre, é preciso todo um trabalho e toda uma observação, não apenas de outros mestres, mas também da comunidade onde se está inserido. É um comprometimento não com um grupo, mas com uma sociedade que cobra uma conduta. Não basta apenas tocar um berimbau ou ter um bonito jogo. Existem outros elementos implícitos nisso que estão relacionados à história de vida. Por si só, as manifestações da diáspora africana já sofrem muita discriminação e os mestres tem que estar cientes que a cultura afro-brasileira deve ser elevada, sendo uma referência positiva.
Como o senhor avalia a presença da Capoeira Angola no exterior?
O Brasil chegou a um determinado momento em que nós exportamos a capoeira para fora e depois importamos ela de volta. Nós precisamos tomar cuidado com esse canal de duas vias, com essas idas e vindas. Hoje, inclusive, há muitas pessoas que vão para fora prematuramente e estão despreparadas. São pessoas que a princípio vão para resolver sua questão social, de sobrevivência, e não fortalecer a capoeira em si. Eles até são corajosos, por serem desbravadores e irem sem apoio, mas a coisa tá muito solta. Lá fora, por exemplo, há pouca representatividade de mulheres capoeiristas. Para elas é mais difícil ainda iniciar um trabalho sério no exterior por conta da discriminação. A gente não pode deixar fora da nossa conversa a questão do turismo sexual, isso acontece muito, principalmente por parte dos homens e da nossa sociedade machista. Por outro lado, existem trabalhos feitos lá fora que merecem respeito, principalmente pelo comprometimento das pessoas. Lá fora tem muito trabalho e às vezes muito mais respeito que no Brasil. São dois pesos que precisamos avaliar e respeitar, antes de criticar. A FICA, por exemplo, tem um núcleo na Finlândia, onde por oito meses é inverno com temperaturas abaixo de zero e uma cultura totalmente diferente. É a capoeira sob outro ponto de vista. Em Israel, por exemplo, a capoeira é muito bem inserida. Externamente, há países muito mais organizados que o nosso país, em alguns sentidos. É preciso que o Brasil dê o real valor e o real respeito à Capoeira Angola.
Qual a importância da Capoeira Angola ser inserida e fortemente reconhecida em um evento de culturas tradicionais?
A Capoeira Angola e outros movimentos de matrizes africanas são instrumentos de resistência, de perpetuação da história de como esse dá oportunidade para as pessoas perceberem, mesmo em uma edição curta, o quanto a cultura da capoeira é rica enquanto possibilidade de filosofia de vida. Saindo de um encontro assim, cada um pode buscar e fortalecer a capoeira em suas cidades e dar continuidade à ela.
Como se dá o processo pedagógico da Capoeira Angola, a transmissão desse saber que tanto trabalha com a oralidade e a música?
Cada educador tem sua pedagogia e sua didática. Eu tenho uma forma diferente, o mestre de outro capoeira tem a sua forma de repassar o saber. Uma das nossas maiores referências, Vicente Ferreira de Pastinha, o Mestre Pastinha, dizia que cada um é cada um. O capoeirista precisa aproveitar os seus gestos livres, a sua própria forma para conduzir o seu trabalho. A capoeira é uma ferramenta de autodescoberta das potencialidades dos indivíduos. Nela você descobre líderes, descobre a forma de atuar de cada um. Como lidamos com seres humanos e com valores diferentes, em uma determinada aula um único mestre ou professor vai ter que usar mais de uma pedagogia para poder mexer com aquele indivíduo. Um aluno pode ter um olhar maior por uma história, outro pela música, outro pelos movimentos. Mas é importante frisar que a capoeira é tudo isso. Onde a capoeira toca o aluno mais forte é que vamos mostrar a importância de toda a nossa filosofia. A capoeira é uma arte, é uma cultura, é uma filosofia de vida, é uma forma única de caminhar. O capoeirista não joga capoeira só quando o berimbau toca. No momento em que ele deita e levanta, já está praticando capoeira. É uma forma de ver o mundo diferente. A capoeira angola traz essa filosofia, como possibilidade de mudança para uma sociedade melhor. Eu vejo a capoeira como um Quilombo, porque ela reúne pessoas com único ideal, construído lá atrás, há mais de 400 anos: a capoeira como forma de agregar os indivíduos em uma luta de libertação. Que libertação é essa? A libertação consigo mesmo, em prol da sociedade. A luta é contra quem? A luta hoje não é rabo de arraia, rasteira e cabeçada. A luta hoje é contra o sistema. A gente precisa buscar valores que são de fundamental importância para um mundo melhor.
A Capoeira Angola, como manifestação tradicional, tem seu próprio universo e expressões. O que é a tão falada mandinga?
Mandinga é o que estamos fazendo agora. Mandinga é o fato de você dialogar com o outro, perceber a subjetividade daquilo que está sendo dialogado. A mandinga é estar posicionado, olhando no olhar do outro, e percebendo o que acontece lá, o que acontece aqui. É estar atento a tudo que está acontecendo. Isso é ser mandingueiro. Não é ser sabido, tirar proveito, mas é estar mais esperto, mais aguçado com o que acontece no mundo.